15/01/2013

Sobre o póstumo, o mórbido e o medo

Meu bem,
estarei morrendo em dois dias, você sabe, e aqui te deixo as alternativas silenciadas das minhas lembranças.

Se eu morrer, os meus sonhos terão sido apenas medo.
Eu nunca terei dirigido nada mais do que um quarteirão e você nunca me dará uma carona para ver o mundo.
Não vou mais precisar rir das suas piadas de mau gosto nem te cantar algo que te faça rir dos meus desafinos bêbados.
Você vai abrir o Drummond na página 26 e me tornará coisa finda na tua memória e eterna nos meus rabiscos que se fingem de letras nas páginas quase brancas à meia luz.
Talvez você nem soubesse do álcool que me abstive por sua causa. - À propósito, estou deixando meu fígado, não esqueça de entrar pra fila do transplante.
Se eu morrer, não vai dar pra me ligar de madrugada, nem pra ser imprudente sem ter alguém pra te xingar com propriedade. Não te oferecerei mais meu parco peito dolorido de consolo ou colo para as tuas brigas com deus e o mundo - não por opção, mas por fatalidade.
Não terá quem dance "bird is the word" sem sentir vergonha, nem quem te olhe nos olhos sem medo de se afogar e se perder e nunca ser salva do abismo da tua alma transparente
Nossos planos ficarão por aqui e então, nunca tomaremos o poder nem revolucionaremos o país. Eu nunca terei concluído, de fato, o ensino médio, nem experimentado da tua comida ou pulado de paraquedas contigo, nem mesmo ido ao teu aniversário. Nunca serei jornalista, adulta ou mãe. Meu futuro é breve e não tenho tempo para açúcar ou temperatura agradável de café.
Aliás, teus versos - teus traços particulares de Neruda - estão guardados na última gaveta, pode levar, se quiser - eu também estarei levando-os, que são meus, por direito.
Desculpa não ter mudado de time e não ter conseguido te fazer gostar do Chico. Por ter arranhado tuas costas e ter cabido melhor na tua camisa do futebol do que você mesmo e por molhar teu ombro com meu choro manhoso quando fui pequena demais pra você cuidar.
Desculpa por pedir desculpa assim de última hora.

Quando a bala de um calibre 38 se acoplar perdida no meu peito, estaremos embalados por um sonzinho bom e você vai me cantar, quase em segredo, e eu vou fingir que não é tudo o que eu queria ouvir, enquanto os meus pêlos brincam na minha pele e você ri de como eu fico tão vermelha e tão envergonhada como último lampejo de vida. Teus braços tentarão amenizar a queda que não pude evitar com minhas pernas desobedientes e já não vai dar pra distinguir a cor dos teus olhos. Não me peça para não ir porque pra mim sempre foi difícil te dizer não - mesmo sabendo que nesse fonema breve está e esteve contido toda a minha paz.
Eu morro, mas meu coração ainda bate agitado no teu peito. A única coisa que lembro enquanto dou meus últimos suspiros, é que nem todo mundo tem a sorte de morrer nos braços de quem se ama...



N.




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a letra é minha, mas a carta é tua, incompleta até nas entrelinhas
eles nunca vão entender... e tudo isso vai morrer em segredo.

2 comentários:

  1. Sabe, esse texto tem uma... sinceridade, tão linda e dolorosa que pensei até em te ligar para saber se você está bem. Muito comovente. :*

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